Em setembro descobri, não lembro como, um blog muito especial: parafrancisco.blogspot.com.
Uma mulher perde o marido enquanto está grávida e resolve criar o blog para "gritar para o mundo" e contar sobre o pai, para Francisco. Li alguns posts, deixei um comentário, adicionei aos meus favoritos. Hoje vejo no Sem Censura que o blog gerou um livro, editado pela Saraiva. Adorei saber.
É muito bom perceber a capacidade humana de transformar o sofrimento; não pela negação, mas pela coragem de encarar, de chorar, de (se) expor, de assumir o que é preciso, de ser consolado.
Em mim, ajuda a criar coragem.
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
Bálsamo 2
Você já encontrou sua turma?
O patinho feio
(do livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés)
Já estava quase na época da colheita. As velhas faziam bonecas verdes com a palha do milho. Os velhos remendavam cobertores. As moças bordavam flores de um vermelho vivo nos seus vestidos brancos. Os rapazes cantavam enquanto empilhavam o feno dourado. As mulheres tricotavam blusões ásperos para o inverno que viria. Os homens ajudavam a colher, arrancar, cortar e ceifar os frutos que os campos haviam produzido. O vento apenas começava a soltar as folhas um pouco mais, e mais um pouco a cada dia que passava. E lá para os lados do rio, uma pata chocava uma ninhada de ovos.
Tudo estava indo como deveria para essa mãe pata e, afinal, um a um, os ovos começaram a tremer e sacudir até que as cascas racharam e deles saíram cambaleantes seus novo filhtes. Restava, porém, um ovo, um ovo muito grande. Ele estava ali parado como uma pedra.
Uma velha pata veio visitar, e a mãe pata exibiu seus filhotes.
- Eles não são lindos? - gabou-se ela. Mas o ovo ainda sem rachar chamou a atenção da velha pata, e esta tentou dissuadir a mãe de continuar a chocar aquele ovo.
-É um ovo de peru - exclamou a velha pata. - Absolutamente não serve como ovo. Não se pode levar um peru para dentro d'água, você sabia? - Ela sabia, porque já havia tentado.
A mãe pata, no entanto, achou que estava chocando há tanto tempo que mais um pouquinho não ia fazer mal.
Afinal, o ovo grande começou a estremecer e a rolar. Acabou quebrando, e dele saiu uma criatura grande e desajeitada. Sua pele era marcada por veias sinuosas azuis e vermelhas. Seus pés eram de um roxo claro. Seus olhos, de um rosa transparente.
A mãe pata inclinou a cabeça, esticou o pescoço e o contemplou. Não pode se conter: ele era feio mesmo. Talvez seja mesmo um peru!, preocupou-se ela. Contudo, quando o patinho feio entrou na água acompanhando os outros filhotes, a mãe pata viu que ele nadava muito bem. É, ele é dos meus, apesar de ter essa aparência estranha. No fundo, porém, do ângulo certo... ele é quase bonito.
E assim ela o apresentou às outras criaturas do quintal da fazenda, mas, antes que percebesse, outro pato atravessou o quintal a toda e bicou o patinho feio bem no pescoço.
- Pare com isso! - gritou a mãe pata.
- Ora, ele é tão feio e esquisito. Ele precisa que o maltratem - retrucou o valentão.
- Oh, mais uma ninhada! Como se já não tivéssemos bocas demais a alimentar! - exclamou a pata rainha com o trapo vermelho na perna. - E aquele lá, aquele grandão e feio? Bem, aquilo sem dúvida é um engano.
-Ele não é um engano - disse a mãe pata. - Ele vai ser muito forte. Foi só que ele ficou tempo demais dentro do ovo e ainda está meio deformado. Mas ele vai se recuperar. Vocês vão ver. - Ela limpou com o bico as penas do patinho feio e lambeu seu topete.
Os outros, no entanto, faziam tudo o que podiam para importunar o patinho feio. Voavam para atacá-lo, bicavam-no e gritavam com ele. E à medida que o tempo passava, eles o atormentavam cada vez mais. Ele se escondia, se desviava, saía em ziguezague, mas não conseguia escapar. O patinho era a mais infeliz das criaturas.
A princípio sua mãe o defendia, mas, com o tempo até ela se cansou daquilo tudo.
- Como eu queria que você fosse embora - exclamou exasperada. E foi assim que o patinho feio fugiu. Com a maior parte das suas penas arrancada e todo enlameado, ele correu e correu até chegar a um pântano. Ali ele se deitou à beira d'água com o pescoço esticado e sorvia um pouco d'água de vez em quando.
Dos juncos dois gansos o observavam. Eram jovens e cheios de si.
- Ei, você aí, criatura horrorosa - disseram rindo. - Quer vir conosco?
De repente, ecoaram tiros. Os gansos caíram com um baque e a água do pântano ficou vermelha com seu sangue. O patinho feio mergulhou para se abrigar, e por toda parte só havia tiros, fumaça e cães latindo.
Afinal, o pântano ficou tranquilo, e o patinho saiu correndo e voando a maior distância possível. Perto do anoitecer, ele chegou a um pobre casebre. A porta estava pendurada por um barbante, e havia mais fendas do que paredes. Ali vivia uma velha esfarrapada com seu gato desgrenhado e sua galinha vesga. O gato fazia jus a morar com a velha por apanhar camundongos. A galinha, por botar ovos.
A velha achou que estava com sorte por ter encontrado um pato. Talvez fosse uma pata e também botasse ovos e, se não fosse, podia matá-lo para comer. E assim o pato ficou, mas ele era perseguido pelo gato e pela galinha.
No final das contas, ficou claro que aqui também não haveria paz para o patinho, e por isso ele partiu para ver se as coisas podiam ser melhores mais adiante.
Ele encontrou por acaso um laguinho e, enquanto esta nadando, foi ficando cada vez mais frio. Um bando de aves passou voando lá em cima, as mais lindas que ele já havia visto. Elas gritaram para cumprimentá-lo, e ouvir suas vozes fez com que o coração do patinho saltasse e se apertasse ao mesmo tempo. Ele gritou de volta com uma voz que nunca havia emitido antes. Ele nunca havia visto criaturas mais lindas, e nunca havia se sentido mais desolado.
Ele girou e girou na água para observá-las enquanto desapareciam nos céus e depois mergulhou até o fundo do lago e ali se aninhou, trêmulo. Estava fora de si por sentir um amor desesperançado por aqueles enormes pássaros brancos, um amor que ele não conseguia entender.
Um vento mais frio começou a soprar e foi ficando cada vez mais forte com o passar dos dias. E a neve caiu sobre o gelo. Os velhos quebravam o gelo nos baldes de leite, e as velhas fiavam até tarde da noite. As mães alimentavam três bocas de cada vez à luz de velas, e os homens saíam à procura de ovelhas sob o céu branco da meia noite. Os jovens entravam na neve até a cintura para ir ordenhar, e as moças imaginavam ver o rosto de rapazes bonitos nas chamas do fogão enquanto cozinhavam. E no lago ali por perto, o patinho precisava nadar cada vez mais rápido em círculos para manter um lugar aberto no gelo.
Um dia de manhã, o patinho se descobriu preso no gelo e foi aí que ele sentiu que ia morrer. Dois patos selvagens vieram voando e chegaram escorregando no gelo. Eles observaram o patinho.
- Como você é feio - grasnaram. - Que pena. É uma tristeza. Não se pode fazer nada por alguém como você. - E saíram voando.
Felizmente, um lavrador passou por ali e libertou o patinho quebrando o gelo com seu cajado. Ele levantou o patinho, abrigou-o no casaco e voltou para casa. Na casa do lavrador, as crianças quiseram pegar o patinho, mas ele teve medo. Voou até os caibros do telhado, fazendo com que toda a poeira caísse na manteiga. De lá de cima, ele mergulhou direto no balde de leite e, quando ia saindo todo molhado e grudento, caiu no barril de farinha de trigo. A mulher do lavrador saiu atrás dele com uma vassoura enquanto as crianças riam a mais não poder.
O patinho saiu agitado pela porta do gato e, lá fora afinal, caiu quase morto na neve. Dali, ele se forçou a prosseguir até chegar a mais um lago, a mais uma casa, a outro lago, a outra casa, e o inverno inteiro transcorreu dessa forma, alternando entre a vida e a morte.
Mesmo assim, a brisa suave da primavera voltou. As velhas vieram arejar os acolchoados, e os velhos guardaram suas ceroulas compridas. Novos bebês chegavam no meio da noite, enquanto seus pais andavam de um lado para o outro no quintal, debaixo do céu estrelado. Durante o dia, as moças enfiavam narcisos nos cabelos, e os rapazes examinavam os tornozelos femininos. E num lago por ali, a água ficou mais agradável e o patinho feio que nela boiava abriu as asas.
Como eram grandes e fortes as suas asas. Elas o levaram bem para o alto acima da terra. Dos céus, ele via os pomares com seus mantos brancos, os lavradores arando, os jovens de toda a natureza saindo da casca, tropeçando, zumbindo e nadando. Também brincando na água do lago havia três cisnes, as mesmas criaturas maravilhosas que ele havia visto no outono; aquelas que lhe haviam causado um aperto tão forte no coração. Ele sentiu um impulso de se unir a elas.
E se fingirem que gostam de mim, e depois, assim que eu me aproximar, saírem voando às risadas? - pensou o patinho. Ele desceu planando e pousou no lago, com o coração batendo forte.
Assim que o viram, os cisnes começaram a nadar na sua direção. Sem dúvida, estou a ponto de encontrar meu fim, pensou o patinho, mas, se tenho de ser morto, melhor que seja por essas lindas criaturas do que pela mão de caçadores, donas de casa ou longos invernos. E abaixou a cabeça para aguardar os golpes.
Que surpresa! Na imagem na água ele viu um cisne: plumagem branca como a neve, olhos escuros e tudo o mais. O patinho feio, a princípio, não se reconheceu porque era exatamente igual aos belos estranhos, igual àqueles que ele havia admirado de longe.
E acabou se revelando que ele era um deles no final das contas. Seu ovo por acaso havia rolado para um ninho de patos. Ele era um cisne, um cisne magnífico. E pela primeira vez sua própria família se aproximava dele, tocando-o com cuidado e carinho com as pontas das asas. Eles lhe limparam as penas com seus bicos e nadaram muito ao seu redor para cumprimentá-lo.
- Ei, tem mais um cisne! - gritaram as crianças que vinham trazer migalhas de pão para os cisnes. Como costumavam fazer as crianças de qualquer lugar, elas correram para contar a todos. As velhas vieram até a beira d'água, destrançando seus longos cabelos prateados. Os rapazes juntavam nas mãos em taça um pouco da água limpa e a atiravam na direção das moças, que enrubesciam como pétalas. Os homens tiraram uma folga da ordenha só para tomar um pouco daquele ar. As mulheres pararam um pouco de remendar só para rir com seus parceiros. E os velhos começaram a contar histórias sobre como a guerra é longa e a vida é curta.
E, um a um, fosse pela vida, pela paixão, fosse porque o tempo estava passando, todos se afastaram dançando. Os rapazes, as moças, todos foram embora dançando. Os mais velhos, os maridos, as esposas, todos foram embora dançando. As crianças e os cisnes também se afastaram dançando... deixando ali só nós... a primavera... e mais uma mãe pata chocando seus ovos junto ao rio.
O patinho feio
(do livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés)
Já estava quase na época da colheita. As velhas faziam bonecas verdes com a palha do milho. Os velhos remendavam cobertores. As moças bordavam flores de um vermelho vivo nos seus vestidos brancos. Os rapazes cantavam enquanto empilhavam o feno dourado. As mulheres tricotavam blusões ásperos para o inverno que viria. Os homens ajudavam a colher, arrancar, cortar e ceifar os frutos que os campos haviam produzido. O vento apenas começava a soltar as folhas um pouco mais, e mais um pouco a cada dia que passava. E lá para os lados do rio, uma pata chocava uma ninhada de ovos.
Tudo estava indo como deveria para essa mãe pata e, afinal, um a um, os ovos começaram a tremer e sacudir até que as cascas racharam e deles saíram cambaleantes seus novo filhtes. Restava, porém, um ovo, um ovo muito grande. Ele estava ali parado como uma pedra.
Uma velha pata veio visitar, e a mãe pata exibiu seus filhotes.
- Eles não são lindos? - gabou-se ela. Mas o ovo ainda sem rachar chamou a atenção da velha pata, e esta tentou dissuadir a mãe de continuar a chocar aquele ovo.
-É um ovo de peru - exclamou a velha pata. - Absolutamente não serve como ovo. Não se pode levar um peru para dentro d'água, você sabia? - Ela sabia, porque já havia tentado.
A mãe pata, no entanto, achou que estava chocando há tanto tempo que mais um pouquinho não ia fazer mal.
Afinal, o ovo grande começou a estremecer e a rolar. Acabou quebrando, e dele saiu uma criatura grande e desajeitada. Sua pele era marcada por veias sinuosas azuis e vermelhas. Seus pés eram de um roxo claro. Seus olhos, de um rosa transparente.
A mãe pata inclinou a cabeça, esticou o pescoço e o contemplou. Não pode se conter: ele era feio mesmo. Talvez seja mesmo um peru!, preocupou-se ela. Contudo, quando o patinho feio entrou na água acompanhando os outros filhotes, a mãe pata viu que ele nadava muito bem. É, ele é dos meus, apesar de ter essa aparência estranha. No fundo, porém, do ângulo certo... ele é quase bonito.
E assim ela o apresentou às outras criaturas do quintal da fazenda, mas, antes que percebesse, outro pato atravessou o quintal a toda e bicou o patinho feio bem no pescoço.
- Pare com isso! - gritou a mãe pata.
- Ora, ele é tão feio e esquisito. Ele precisa que o maltratem - retrucou o valentão.
- Oh, mais uma ninhada! Como se já não tivéssemos bocas demais a alimentar! - exclamou a pata rainha com o trapo vermelho na perna. - E aquele lá, aquele grandão e feio? Bem, aquilo sem dúvida é um engano.
-Ele não é um engano - disse a mãe pata. - Ele vai ser muito forte. Foi só que ele ficou tempo demais dentro do ovo e ainda está meio deformado. Mas ele vai se recuperar. Vocês vão ver. - Ela limpou com o bico as penas do patinho feio e lambeu seu topete.
Os outros, no entanto, faziam tudo o que podiam para importunar o patinho feio. Voavam para atacá-lo, bicavam-no e gritavam com ele. E à medida que o tempo passava, eles o atormentavam cada vez mais. Ele se escondia, se desviava, saía em ziguezague, mas não conseguia escapar. O patinho era a mais infeliz das criaturas.
A princípio sua mãe o defendia, mas, com o tempo até ela se cansou daquilo tudo.
- Como eu queria que você fosse embora - exclamou exasperada. E foi assim que o patinho feio fugiu. Com a maior parte das suas penas arrancada e todo enlameado, ele correu e correu até chegar a um pântano. Ali ele se deitou à beira d'água com o pescoço esticado e sorvia um pouco d'água de vez em quando.
Dos juncos dois gansos o observavam. Eram jovens e cheios de si.
- Ei, você aí, criatura horrorosa - disseram rindo. - Quer vir conosco?
De repente, ecoaram tiros. Os gansos caíram com um baque e a água do pântano ficou vermelha com seu sangue. O patinho feio mergulhou para se abrigar, e por toda parte só havia tiros, fumaça e cães latindo.
Afinal, o pântano ficou tranquilo, e o patinho saiu correndo e voando a maior distância possível. Perto do anoitecer, ele chegou a um pobre casebre. A porta estava pendurada por um barbante, e havia mais fendas do que paredes. Ali vivia uma velha esfarrapada com seu gato desgrenhado e sua galinha vesga. O gato fazia jus a morar com a velha por apanhar camundongos. A galinha, por botar ovos.
A velha achou que estava com sorte por ter encontrado um pato. Talvez fosse uma pata e também botasse ovos e, se não fosse, podia matá-lo para comer. E assim o pato ficou, mas ele era perseguido pelo gato e pela galinha.
No final das contas, ficou claro que aqui também não haveria paz para o patinho, e por isso ele partiu para ver se as coisas podiam ser melhores mais adiante.
Ele encontrou por acaso um laguinho e, enquanto esta nadando, foi ficando cada vez mais frio. Um bando de aves passou voando lá em cima, as mais lindas que ele já havia visto. Elas gritaram para cumprimentá-lo, e ouvir suas vozes fez com que o coração do patinho saltasse e se apertasse ao mesmo tempo. Ele gritou de volta com uma voz que nunca havia emitido antes. Ele nunca havia visto criaturas mais lindas, e nunca havia se sentido mais desolado.
Ele girou e girou na água para observá-las enquanto desapareciam nos céus e depois mergulhou até o fundo do lago e ali se aninhou, trêmulo. Estava fora de si por sentir um amor desesperançado por aqueles enormes pássaros brancos, um amor que ele não conseguia entender.
Um vento mais frio começou a soprar e foi ficando cada vez mais forte com o passar dos dias. E a neve caiu sobre o gelo. Os velhos quebravam o gelo nos baldes de leite, e as velhas fiavam até tarde da noite. As mães alimentavam três bocas de cada vez à luz de velas, e os homens saíam à procura de ovelhas sob o céu branco da meia noite. Os jovens entravam na neve até a cintura para ir ordenhar, e as moças imaginavam ver o rosto de rapazes bonitos nas chamas do fogão enquanto cozinhavam. E no lago ali por perto, o patinho precisava nadar cada vez mais rápido em círculos para manter um lugar aberto no gelo.
Um dia de manhã, o patinho se descobriu preso no gelo e foi aí que ele sentiu que ia morrer. Dois patos selvagens vieram voando e chegaram escorregando no gelo. Eles observaram o patinho.
- Como você é feio - grasnaram. - Que pena. É uma tristeza. Não se pode fazer nada por alguém como você. - E saíram voando.
Felizmente, um lavrador passou por ali e libertou o patinho quebrando o gelo com seu cajado. Ele levantou o patinho, abrigou-o no casaco e voltou para casa. Na casa do lavrador, as crianças quiseram pegar o patinho, mas ele teve medo. Voou até os caibros do telhado, fazendo com que toda a poeira caísse na manteiga. De lá de cima, ele mergulhou direto no balde de leite e, quando ia saindo todo molhado e grudento, caiu no barril de farinha de trigo. A mulher do lavrador saiu atrás dele com uma vassoura enquanto as crianças riam a mais não poder.
O patinho saiu agitado pela porta do gato e, lá fora afinal, caiu quase morto na neve. Dali, ele se forçou a prosseguir até chegar a mais um lago, a mais uma casa, a outro lago, a outra casa, e o inverno inteiro transcorreu dessa forma, alternando entre a vida e a morte.
Mesmo assim, a brisa suave da primavera voltou. As velhas vieram arejar os acolchoados, e os velhos guardaram suas ceroulas compridas. Novos bebês chegavam no meio da noite, enquanto seus pais andavam de um lado para o outro no quintal, debaixo do céu estrelado. Durante o dia, as moças enfiavam narcisos nos cabelos, e os rapazes examinavam os tornozelos femininos. E num lago por ali, a água ficou mais agradável e o patinho feio que nela boiava abriu as asas.
Como eram grandes e fortes as suas asas. Elas o levaram bem para o alto acima da terra. Dos céus, ele via os pomares com seus mantos brancos, os lavradores arando, os jovens de toda a natureza saindo da casca, tropeçando, zumbindo e nadando. Também brincando na água do lago havia três cisnes, as mesmas criaturas maravilhosas que ele havia visto no outono; aquelas que lhe haviam causado um aperto tão forte no coração. Ele sentiu um impulso de se unir a elas.
E se fingirem que gostam de mim, e depois, assim que eu me aproximar, saírem voando às risadas? - pensou o patinho. Ele desceu planando e pousou no lago, com o coração batendo forte.
Assim que o viram, os cisnes começaram a nadar na sua direção. Sem dúvida, estou a ponto de encontrar meu fim, pensou o patinho, mas, se tenho de ser morto, melhor que seja por essas lindas criaturas do que pela mão de caçadores, donas de casa ou longos invernos. E abaixou a cabeça para aguardar os golpes.
Que surpresa! Na imagem na água ele viu um cisne: plumagem branca como a neve, olhos escuros e tudo o mais. O patinho feio, a princípio, não se reconheceu porque era exatamente igual aos belos estranhos, igual àqueles que ele havia admirado de longe.
E acabou se revelando que ele era um deles no final das contas. Seu ovo por acaso havia rolado para um ninho de patos. Ele era um cisne, um cisne magnífico. E pela primeira vez sua própria família se aproximava dele, tocando-o com cuidado e carinho com as pontas das asas. Eles lhe limparam as penas com seus bicos e nadaram muito ao seu redor para cumprimentá-lo.
- Ei, tem mais um cisne! - gritaram as crianças que vinham trazer migalhas de pão para os cisnes. Como costumavam fazer as crianças de qualquer lugar, elas correram para contar a todos. As velhas vieram até a beira d'água, destrançando seus longos cabelos prateados. Os rapazes juntavam nas mãos em taça um pouco da água limpa e a atiravam na direção das moças, que enrubesciam como pétalas. Os homens tiraram uma folga da ordenha só para tomar um pouco daquele ar. As mulheres pararam um pouco de remendar só para rir com seus parceiros. E os velhos começaram a contar histórias sobre como a guerra é longa e a vida é curta.
E, um a um, fosse pela vida, pela paixão, fosse porque o tempo estava passando, todos se afastaram dançando. Os rapazes, as moças, todos foram embora dançando. Os mais velhos, os maridos, as esposas, todos foram embora dançando. As crianças e os cisnes também se afastaram dançando... deixando ali só nós... a primavera... e mais uma mãe pata chocando seus ovos junto ao rio.
domingo, 2 de novembro de 2008
Viva Pedro Cardoso!
Antes de mais nada, preciso confessar que estou quase um mês atrasada. Eu não sabia que o ator Pedro Cardoso tinha lido um manifesto contra a pornografia durante o Festival de Cinema do Rio. Fiquei sabendo agora, depois de assistir à entrevista dele no programa Conexão Roberto D'Avila.
Gostei muito do que ouvi e fui ler o manifesto, também gostei do que li; da postura, do âmago da questão colocado. Pensei que podia escrever aqui muitas coisas sobre o assunto, mas talvez não seja o caso.
Sempre questionei a nudez "sem justificativa" apresentada na tv e no cinema, e também as revistas de nu "artístico" vendendo "postas de carne" (entre aspas porque é expressão usada por outra pessoa) nas bancas de jornais. Sempre fiquei surpresa com a maneira com que as pessoas veem esses programas e essas revistas achando normal; como reproduzem em seus diálogos e em suas relações essa falta/esse excesso. Sempre achei que esse assunto é uma questão política, uma questão de poder, uma questão de dominação; ligado, principalmente, à manutenção da submissão do feminino e ao consumo.
Os excessos, como já disse alguma vez, incomodam-me deveras.
Torço para que o manifesto do Pedro Cardoso contribua para alguma tomada de consciência. Como ele disse, não é uma questão de censura ou moralismo; não, não é. Concordo com ele, por vezes, também sou confundida com uma moralista, adjetivo - pejorativo - que não me cabe.
Vocês já leram o manifesto?
Gostei muito do que ouvi e fui ler o manifesto, também gostei do que li; da postura, do âmago da questão colocado. Pensei que podia escrever aqui muitas coisas sobre o assunto, mas talvez não seja o caso.
Sempre questionei a nudez "sem justificativa" apresentada na tv e no cinema, e também as revistas de nu "artístico" vendendo "postas de carne" (entre aspas porque é expressão usada por outra pessoa) nas bancas de jornais. Sempre fiquei surpresa com a maneira com que as pessoas veem esses programas e essas revistas achando normal; como reproduzem em seus diálogos e em suas relações essa falta/esse excesso. Sempre achei que esse assunto é uma questão política, uma questão de poder, uma questão de dominação; ligado, principalmente, à manutenção da submissão do feminino e ao consumo.
Os excessos, como já disse alguma vez, incomodam-me deveras.
Torço para que o manifesto do Pedro Cardoso contribua para alguma tomada de consciência. Como ele disse, não é uma questão de censura ou moralismo; não, não é. Concordo com ele, por vezes, também sou confundida com uma moralista, adjetivo - pejorativo - que não me cabe.
Vocês já leram o manifesto?
sábado, 1 de novembro de 2008
Bálsamo 1
Fátima, a fiandeira
"Numa cidade do mais longínquo Ocidente, vivia uma jovem chamada Fátima, filha de um próspero fiandeiro. Um dia o pai lhe disse:
- Vem, filha, faremos uma viagem, pois tenho negócios a resolver nas ilhas do mar Mediterrâneo. Talvez encontres por lá algum jovem atraente, de boa posição, com quem poderias se casar.
Puseram-se a caminho e viajaram de ilha em ilha; o pai cuidando de seus negócios, enquanto Fátima sonhava com o marido que logo poderia ter. Mas um dia, quando estavam a caminho de Creta, levantou-se uma tempestade e o barco naufragou. Fátima, semiconsciente, foi arrastada a uma praia perto de Alexandria. Seu pai tinha morrido e ela ficou totalmente desamparada.
Podia recordar-se apenas vagamente de sua vida até aquele momento, pois a experiência do naufrágio, e o fato de ter ficado exposta às inclemências do mar, tinham-na deixado completamente exausta.
Quando vagava pela areia, uma família de tecelões a encontrou. Embora fossem pobres, levaram-na para sua casa humilde e ensinaram-lhe seu ofício. Desse modo, Fátima iniciou uma nova vida, e dentro de um ou dois anos voltou a ser feliz, reconciliada com sua sorte. Porém, um dia, quando estava na praia, um bando de mercadores de escravos desembarcou e a levou, junto com outros cativos.
Apesar de lamentar-se amargamente de seu destino, eles não demonstraram nenhuma compaixão: levaram-na para Istambul e a venderam como escrava. Seu mundo tinha desmoronado pela segunda vez.
No mercado havia poucos compradores. Um deles era um homem que procurava escravos para trabalhar em sua serraria, onde fabricava mastros para embarcações. Quando viu o abatimento da infeliz Fátima, decidiu comprá-la, pensando que poderia proporcionar-lhe uma vida um pouco melhor do que teria nas mãos de outro comprador.
Levou Fátima para casa, com a intenção de fazer dela uma criada de sua esposa. Ao chegar, soube que tinha perdido todo seu dinheiro quando um carregamento fora capturado por piratas. Não podia enfrentar as despesas que lhe davam os empregados, e assim ele, Fátima e sua mulher arcaram sozinhos com a pesada tarefa de fabricar mastros.
Fátima, grata ao seu patrão por tê-la resgatado, trabalhou tão arduamente e tão bem que ele lhe deu a liberdade e ela passou a ser sua auxiliar de confiança. Assim, chegou a ser relativamente feliz em sua terceira profissão.
Um dia ele disse:
- Fátima, quero que vás a Java, como minha agente, com um carregamento de mastros; procura vendê-los com lucro.
Ela se pôs a caminho mas, quando o barco estava diante da costa chinesa, um tufão o fez naufragar. Mais uma vez, Fátima se viu jogada na praia de um país desconhecido. De novo chorou amargamente, porque sentia que em sua vida nada acontecia como esperava. Sempre que tudo parecia andar bem, acontecia algo que destruía suas esperanças.
- Por que será - perguntou pela terceira vez - que sempre que tento fazer alguma coisa ela não dá certo? Por que devo passar por tantas desgraças?
Como não teve respostas, levantou-se da areia e afastou-se da praia.
Ninguém, na China, tinha ouvido falar de Fátima e de seus problemas. Mas existia a lenda de que um dia chegaria certa mulher estrangeira, capaz de fazer uma tenda para o imperador. Como naquela época não existia ninguém na China que soubesse fazer tendas, todo mundo aguardava com ansiedade o cumprimento da profecia.
Para ter certeza de que a estrangeira, ao chegar, não passaria sem ser notada, uma vez por ano os sucessivos imperadores da China costumavam mandar seus mensageiros a todas as cidades e aldeias do país, pedindo que toda mulher estrangeira fosse levada à corte.
Exatamente numa dessas ocasiões, esgotada, Fátima chegou a uma cidade costeira da China. Os habitantes do lugar falaram com ela através de um intérprete, e lhe explicaram que devia ir à presença do imperador.
- Senhora - disse o imperador quando Fátima foi levada até ele - sabe fabricar uma tenda?
- Acho que sim - respondeu a moça.
Pediu cordas, mas não tinham. Lembrando-se dos seus tempos de fiandeira, Fátima então colheu linho e fabricou-as. Depois pediu um tecido resistente, mas os chineses não tinham do tipo que ela precisava. Então, utilizando suas experiências com os tecelões de Alexandria, fabricou um tecido forte, próprio para tendas. Percebeu que precisava de estacas para a tenda, mas não existiam no país. Lembrando-se do que lhe ensinara o fabricante de mastros em Istambul, Fátima fabricou umas estacas firmes. Quando tudo estava pronto, deu tratos à bola procurando lembrar de todas as tendas que tinha visto em suas viagens. E uma tenda foi construída.
Quando a maravilha foi mostrada ao imperador da China, ele se prontificou a satisfazer qualquer desejo que Fátima expressasse. Ela quis morar na China, se casou com um príncipe atraente e onde, rodeada por seus filhos, viveu muito feliz até o fim de seus dias.
Através dessas aventuras, Fátima compreendeu que o que em cada ocasião lhe tinha parecido ser uma experiência desagradável, acabou sendo parte essencial para a sua felicidade."
Assinar:
Postagens (Atom)